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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

FAMÍLIA MUDA - VENDE TUDO!




FAMÍLIA MUDA - VENDE TUDO!








Vende tudo, tudo mesmo, desde calcinhas usadas até tapetes mijados! Móveis velhos e colônias de cupins e ácaros, traças, mofo... Enfim todos os diversos níveis das cadeias alimentares.

Não é por nada não, mas se alguém disser que mudar de casa é muito simples, DESCONFIE!

Principalmente se este alguém for minha mãe!
Eu que o diga!
Depois de 25 anos morando no mesmo lugar, decidimos que nossa casa de 600m2 estava grande demais para abrigar minha mãe, meu irmão e eu.
Solução?
Mudar!
Simples, certo?
ERRADO! Erradíssimo!
Segundo minha mãe:
- É só chamar a Graneiro que eles fazem tudo!
Claro, seria simples não fosse o fato de que a nova casa, ou melhor, o novo apartamento teria um quinto do tamanho da casa antiga, o que significava que só caberia um décimo da mobília dentro dele.
Certa manhã deparei-me com o que mamãe chamou de solução para nossos problemas.
Ah! O problema? Bem, o problema era grande, na verdade enorme: onde enfiar todas as nossas coisas?
Na casa nova não caberiam todas 250 telas adquiridas por papai em leilões de arte, nem os lustres de cristal de mamãe para pé direito duplo... E o que dizer dos três jogos de sofá batizados por todas as gerações de cachorros que tivemos durante 30 anos?
Ah sim, na sequência das coisas impossíveis me perguntava o que faríamos com os móveis de jardim forjados em ferro? Eles jamais poderiam ter uma vida digna num apartamento sem terraço e com vista para o cemitério! Assim seria o final agonizante da infinidade de quinquilharias que ocupavam os armários de casa, tranqueiras que por anos viveram trancafiadas nos armários como se fossem utensílios faraônicos sagrados em um sacófago.
Mas como ia dizendo... Mamãe, a expert em mudanças, tinha uma solução.
FAMíLIA MUDA - VENDE TUDO!
Certo, a idéia não parecia tão ruim assim, a não ser pelo detalhe insignificante de que quando minha mãe contratou os serviços do FAMUDA, não tinha a menor idéia de duas coisinhas básicas, a primeira delas, quando iríamos mudar, e a segunda:
NUNCA, JAMAIS, EM HIPÓTESE ALGUMA, FAÇA UM FAMÍLIA MUDA SE AINDA ESTIVER MORANDO NO LOCAL.
Resultado...
Caos total.
Durante uma semana que não tinha mais fim, minha vida transformou-se numa aberração caótica com um final tão cubista que faria Picasso repensar sua arte.
Tudo começou quando uma funcionária do FAMUDA foi designada para ir à minha casa catalogar e colocar preço em tudo que seria vendido. Eis que o inferno instaurou-se .
Mamãe num surto de empolgação bizarro, vindo de outras vidas provavelmente, começou a abrir as catacumbas da nossa casa e centenas de objetos não identificados começaram a pipocar diante de meus olhos. Eu nem sabia que os armários de casa guardavam tanta coisa!
Um a um, os copos que minha mãe havia guardado a sete chaves durante toda a sua existência ocuparam toda a extensão da nossa mesa de jantar para 12 pessoas e como se não bastasse depois de um dia inteiro retirando copos dos armários, a mesa tinha uma cobertura extra de todos os modelos de copos possíveis. Uns 500 copos se aglomeravam diante de meus olhos. Eu poderia passar os próximos 25 anos bêbada sem precisar repetir um copo.
As proporções do circo estavam só no começo, pois seguindo de perto a comissão de frente formada pelos copos, vieram os faqueiros. De prata, de aço, inox, enferrujados, com cabo de madeira, com cabo de plástico, enfim, mais de 5 faqueiros intactos surgiram como que retirados de uma cartola.
Mamãe então se empolgou com a possibilidade de vender tudo mesmo e à medida em que os armários foram se esvaziando, a cartela de etiquetas com preço vinda diretamente das mãos da moça do FAMUDA ia minguando. Precisei fugir com meu cachorro de perto da funcionária pois a fúria com que ela ia etiquetando as coisas me deixou apreensiva. Estava correndo o risco de tomar uma etiqueta bem no meio da testa e ser catalogada com um precinho de pechincha.
Ah sim, ali tudo seria vendido como pechincha. Minha casa viraria sem sombras de dúvidas a sucurçal do inferno, um verdadeiro mercado de pulgas, ratos, baratas, traças e outras criaturas decrépitas vindas diretamente de dentro dos móveis e armários que não eram abertos desde o descobrimento da tumba de Tutankamom.
Teríamos o capeta de marchant, e as bruxas e Salém como simpáticas vendedoras. Copos não faltariam para um drink no inferno. Certamente.
Depois da revolta dos copos e faqueiros, foi a vez dos tecidos. Tecidos! É possível? Em 2007 minha mãe tinha tantos tecidos estocados que daria para abrir uma tecelagem exclusiva na 25 de março. Tecidos libaneses, portuguese, italianos, indianos... Tantos quantos coubessem nas mais de 4 malas de onde foram retirados. Em uma dessas malas roupinhas de quando nasci jaziam amareladas com buracos de traças. Roupinhas que mamãe jurava que minha filha usaria um dia. Deus salve a ciência, afinal de que outro modo poderia eu encomendar uma filha?
Quando apresentei a possibilidade de ter um filho, sexo masculino à minha mãe, ela quase teve um treco. Olhou para minha cara e disse:
-Vou doar para o hospital que cuida de crianças carentes né!
É... já deveria ter feito aquilo anos atrás, pensei com meus botões...
Enfim a saga dos tecidos orientais continuava. Foi quando descobri os bordados da Ilha da Madeira. Nem tudo era tranqueira. Ali, no meio de tanta tralha encontrei coisas lindas que logo separei para meu desfrute.
O FAMUDA definitivamente não chegaria à Ilha da Madeira. Tratei logo de fugir dali com as toalhas, jogos americanos e outras coisinhas interessantes. Por falar em toalhas, descobri que minha casa era um reduto de coisas que eu jamais havia posto os olhos. Toalhas foram se amontoando na mesa da copa e em pouco tempo não dava mais para entrar na sala de almoço, pois as toalhas de mesa invadiram o cômodo como se fossem militantes do movimento sem terra.
A coisa estava se tornando perigosa. Um movimento em falso e qualquer um poderia desaparecer no meio de tanto pano e nunca mais ser encontrado.


Mas ainda faltavam os quadros... Todas aquelas obras de arte adquiridas nos leilões chiques de Campos do Jordão que descobrimos valer menos que um cafézinho no boteco da esquina... O que fazer com elas?


Mamãe deu um jeitinho na situação, ligou para nossa dentista, que assim como nós era apaixonada por arte e avisou que estávemos liquidando nossa casa. Então, numa noite que precedeu o grande evento, entre uma etiquetada e outra, vendemos em primeira mão um monte de telas para minha dentista que saiu de casa feliz da vida com suas recém adquiridas obras de arte. Até a irmã dela que foi apenas acompanhá-la, acabou levando, no meio da noite, um jogo de jantar super chique, novinho que foi encontrado em uma escavações nas catacumbas da cozinha.


Ah! Sim. Nem preciso dizer que a vendedora do ano fui eu mesma! Somei, empacotei, dei desconto e tudo. Foi lindo!


Chegou a sexta feira e com ela uma imensa fila na porta da minha casa com direito a volta na esquina e tudo. Uma coisa incrível, um burburinho de gente histérica que desde as 7 horas da manhã aguardava em fila debaixo da minha janela, o tão esperado evento.


Não, nada disso, não era uma nova franquia do INSS... Era sim a fila de compradores para as tranqueiras do nosso GARAGE SALE de luxo.


Assim que as portas da minha casa foram abertas, com direito a panfletos e faixas com letras garrafais por todas as ruas do meu bairro, FAMILIA MUDA - VENDE TUDO, uma confusão de gente saiu se atropelando invadindo em bando minha casa enquanto eu, sorrateiramente fugia pelas portas da garagem para não ser pisoteada pela manada de pessoas que mais pareciam elefantes enfurecidos atrás de melhores ofertas. Nunca vi nada parecido. Fiquei com tanto medo que só voltei para minha casa duas horas depois, bem a tempo de presenciar minha funcionária do lar leiloando a colcha da cama da minha mãe para suas senhoras que praticamente a estavam rasgando em duas partes. Evidentemente que a colcha não estava à venda, mas como as cortinas que também não faziam parte do pacote já tinha ido mais cedo, a colcha foi só um "plus". Uma pequena demonstração da capacidade de negociação da minha empregada que mais um pouco venderia minha mãe pela melhor oferta.


Mamãe ficaria uma arara com toda certeza, mas como ela era a responsável pelo estouro da boiada porteira a dentro, nem me incomodei, afinal, o que era meu estava trancado no meu quarto livre de especulações.


No meio de toda aquela confusão, vi com muito desespero, o skate novinho do meu irmão indo embora nos braços de um senhor. Saí correndo, com meu cachorro debaixo do braço e agarrei o homem com toda a força. Sem mais ne menos arranquei-lhe o skate das mãos e saí gritando para que alguém do FAMUDA viesse me acudir.

Onde estaria minha mãe? Alguém precisava por ordem naquele hospício. As pessoas estavam enlouquecidas e estavam querendo comprar até o que não estava à venda. Aquilo acabaria mal. E foi mesmo o que aconteceu. Várias coisas que não estavam com preço acabaram sendo vendidas. Fiquei furiosa quando vi que meus livros de arte já tinham tido um fim diferente daquele que eu havia planejado para eles. Por sinal ainda estou procurando quem comprou a edição em Italiano da Divina Comédia. Se alguém souber...

Bem, depois de uma tarde surreal o consolo foi contabilizar os lucros do dia. E acreditem, até que as tranqueiras da mamãe renderam uma boa graninha!


Se alguém quisesse ter uma prévia do que foi o tsunami, bastava olhar a minha sala depois que as portas da feira da pechincha foram fechadas. No fim do dia minha casa parecia ter sido vítima de um terremoto de 100 graus na escala dos abalos cismicos.


Ingenuamente pensei que o dia seguinte seria mais fácil.
Engano meu.
Em pleno sábado deixei que meu namorado e um amigo cuidassem da nossa perua Fiorino que deveria ser rebocada da garagem para outra garagem. Foi então que os dois se mandaram. Sumiram, resolveram passear com a fiorino que tinha mais idade que minha bisavó, deixando escancaradas as portas da garagem da minha casa para quem quisesse entrar.
Resultado: todas as divisórias que iriam para o meu escritório novo foram levadas e o prejuízo do descuido foi maior que o lucro do dia pois os catadores de lixo, desses que andam com um carrinho, levaram tudo embora achando que fosse lixo! Lixo! Minhas divisórias lindas... Uma lástima! Como eu disse, toda aquela confusão de gente entrando e saindo não poderia terminar diferente!


Fim do segundo dia de FAMUDA e estavamos quase loucos em casa querendo linchar todo mundo. Mas nem tudo estava perdido ainda.
Quando achei que já tinha visto de tudo na vida, eis que me surpreendo. Algo fora do comum chamou minha atenção e acabei até esquecendo, por um breve momento, a raiva por ter tido minhas coisas levadas como lixo.
Fiquei estarrecida quando presenciei uma mulher enrolando, toda contente, um dos tapetes da minha sala. Depois de passar no caixa improvisado e deixar uma soma absurda de dinheiro entrou no carro toda empolgada levando consigo um autêntico tapete TABACOW com manchas estratégicas de xixi de cachorro cultivadas diáriamente nos últimos 10 anos. Aquilo me deixou emocionada. Fiquei tão feliz que quase chorei...

Mas como o fim do pesadelo estava longe de terminar, achei por bem segurar as lágrimas de felicidade, afinal de contas ainda faltava mais um dia de FAMUDA e pelo andar da carroça, nem Deus poderia prever o que mais poderai acontecer. Minhas energias estavam no fim e o único consolo era saber que existiam pessoas generosas no mundo, que pagavavam uma boa grana por um tapete mijado e fedorento.


Finalmente o último dia chegou e mais um tapete da coleção dos autenticos mijados, manchados e fedorentos se foi. Aquilo era surpreendente, comovente até. Cogitei perguntar ao cidadão que comprava aquele último espécime de tapete/colônia de ácaros e mijo queria levar o cachorro de brinde para continuar regando a estampa floral do tapete, mas desisti assim que vi meu namorado entrando com a mãe dele na minha casa. Depois de quase dois anos de namoro, ele como qualquer homem que se preza não poderia, é claro, ter escolhido um dia mais apropriado para apresentar minha casa à minha futura sogra.


Gente entrando, gente saindo, vizinhos querendo atenção e minha mãe resolveu que seria um bom momento para servir cafezinho para a mãe do meu namorado. Se eu não tivesse vendo a cena se desenrolar, jamais teria acreditado tamanha era a alienação da minha mãe.


A cena era completamente chocante, mamãe, no meio da guerra do Iraque servido cafezinho para a minha futura sogra e conversando amenidades com se estivesse em Buckingan tomando chá com a Rainha enquanto discutia o preço das nossas coisas com os vizinhos que transitavam pelos escombros do que um dia foi meu lar.


Mudar novamente?


Com a minha mãe? Nem pensar! O problema não foi fazer o FAMILIA MUDA - VENDE TUDO! O problema foi continuar morando na casa 7 meses sem mobília! Mas com muito mais eco!






Por Alessandra Maiello



Setembro 2006
Foto: Eu depois do Familia Muda na sala de jantar improvisada!